A vida exige uma – e apenas uma – competência para que um indivíduo possa viver. Ela se chama Entorpecimento. A única forma natural de nascer com esta competência é de ordem psíquica: consiste em mecanismos de não entrar em contato com a horrível realidade.
As duas principais formas artificiais de complementar esta competência – são os dois grandes Ds da humanidade: Drogas e Deuses.
Não há civilização sem entorpecimento porque não há felicidade sem entorpecimento.
Não há civilização sem Deuses nem sem Drogas porque todas aquelas que porventura tenham se constituído dessa forma pereceram em suicídio ou extermínio coletivos por incompetência global decorrente desta incapacidade de esconder-se da própria inexorável miséria.
Como nossas capacidades psíquicas não são tão efetivas, as chances de um ser humano subsistir apenas pelo entorpecimento natural são remotas, de forma que algum dos Ds – mais frequentemente ambos – necessariamente advirá (ainda que existam formas racionais e sutis de entorpecer-se através de um raciocínio oblíquo que leve a conclusões falsas, porém, agradáveis).
A estupidez auto-conservativa da maior parte das civilizações consiste em eleger apenas um número limitado de Deuses e de Drogas efetivos moralmente lícitos para o entorpecimento – desprezando e execrando todos aqueles que os subvertem - e a estupidez da maior parte das pessoas consiste em efetivamente acreditar nesta estupidez.
E a vergonha de toda geração consiste em ignorar que a geração subseqüente só poderá deixar de tocar nos paradigmas da anterior – tão instáveis e sutis pelo seu caráter necessariamente contingente, já que novos fatos implicam em novas realidades dolorosas – se a vida não apresentar absolutamente nenhuma nova miséria.
A nossa história, no entanto, evidencia o contrário: os Ds da geração anterior são cada vez menos efetivos para os novos problemas, e isto em si constitui o maior dos problemas, porque a geração anterior é a geração da tradição que deverá te receber como membro do coletivo (reconhecendo sua humanidade) e que não o fará de forma completa (ou seja, não reconhecerá sua validade absoluta como ser humano, mas apenas relativamente ao respeito de seus paradigmas) alegando auto-evidências historicamente construídas com o intuito implícito de auto-preservação.
As novas gerações são, portanto, cada vez mais mal recebidas pelas antigas, de forma que lhes restam apenas três igualmente péssimas opções: adestramento, falsidade ou rompimento apocalíptico. O primeiro torna-se cada vez menos comum, o segundo cada vez mais comum – devido à elevação exponencial do grau de rompimento paradigmático -, e o terceiro é e sempre será raro.
A única solução possível é a constatação de que o objetivo, o fim último, de cada indivíduo e de cada geração, é exatamente o mesmo: a Felicidade.
Felicidade esta que só pode ser constatada como fim último pela óbvia realidade prática: somos todos infelizes quando sóbrios.
Mas nossa felicidade entorpecida é frágil demais para que o rompimento de paradigma possa ser invocado como justificativa para a abominação da geração futura.
Pois se há algo que nos une uns aos outros como seres humanos é a infelicidade objetiva e a felicidade distante como fim último – possível apenas pelo entorpecimento.
Reconhecer isto é aceitar o outro como ser humano, e negar-lhe esta possibilidade é negar seu direito de Perseguir a felicidade pelos seus próprios meios, ainda que estes não entrem em conflito com a Perseguição da geração anterior (que, geralmente, já se estabeleceu de forma suficientemente estável para conseguir conviver com o advento de novos paradigmas).
O conflito ocorre porque a geração anterior julga ser auto-evidente que a Perseguição da felicidade da geração futura em desacordo com seus paradigmas (todos eles meticulosamente articulados para a manutenção da sua sutil e instável possibilidade de entorpecimento) entra em conflito com a sua própria Perseguição, pois nela está imiscuída a necessidade (tão falsa como absolutamente problemática) de que a geração futura seja idêntica – a saber, que possua os mesmos paradigmas e tabus - à geração passada.
E o problema disto é que o entorpecimento de cada geração é extremamente contingente, de forma que a mínima subversão histórica implica em uma necessidade real de novas formas de entorpecimento, pois novas realidades horríveis nos são impostas na medida em que a história acontece.
A Perseguição da geração futura desta forma entra em conflito com a Perseguição da geração anterior, ambas extremamente sutis, e a única forma de coexistência pacífica é o reconhecimento moral das novas formas de entorpecimento como absolutamente válidas - a menos que entrem em conflito direto com o fim último de ambas as gerações: a Felicidade Entorpecida.
A vida não é séria, o mundo não é sério, e nenhum de nós escolheu nascer - embora cada geração faça o possível para convencer a futura de que esta escolha foi na verdade um presente para o Advindo e não um fardo a ser carregado pela irresponsabilidade de Pais que jamais são ou serão maduros o suficiente para tomar a decisão de criar um novo ser vivo em um novo conjunto de paradigmas.
Fodam-se os seus paradigmas: deixe os meus em paz, e ambos poderemos desfrutar, até mesmo conjuntamente, da efêmera possibilidade de felicidade que temos como refúgio último deste Imperativo Vital, desta Ordem que recebemos pela maior decisão que um ser humano pode tomar (a saber: “devo ou não inserir um novo ser, extremamente sensível e passível de dor e sofrimento, neste mundo absolutamente imprevisível”) e que o funcionamento da natureza exige que seja feita sem o consentimento prévio daquele que será absoluta e plenamente afetado pela decisão – pois isto implicaria, provavelmente, em um imediato desaparecimento da espécie.