Dysfemismo

Sunday, June 21, 2009

A Ética do Médico-Jornalismo

Hoje quero tentar falar um pouco de ética. Da relação de um ser humano consigo mesmo, de sua humanidade íntima. É, como seria de se supor, algo de suma importância, essencial. Até poderíamos dizer que é o que nos torna nós mesmos, este auto-relacionar-se. Mas não importa. Vou tratar de um problema muito pontual, que comentei nos comentários do post passado.

Ética é a única coisa neste mundo da qual ninguém pode irresponsabilizar-se (por contradição, se não é sua responsabilidade não tem nada que ver com ética ou moral). Neste ponto, a questão não é se há ou não livre arbítrio, mas de partir da ‘decisão’ como fato, e de partir do livre arbítrio para que possa haver moral e ética, para que possa haver responsabilidade. E mais: este é o exato oposto do pressuposto do qual tem que partir o cientista, para que possa haver ciência. Porque se há uma vontade livre (causas em si mesmas, que não são efeitos de algo externo), ou melhor, muitas delas, não se pode, como se deve, partir da lei de que para toda causa há um efeito, de que a decisão de um homem é influenciada pelo seus pâncreas, pela sua relação com sua mãe, pela sua classe econômica, etc.

O mesmo homem, enquanto cientista, procura causas para efeitos dados; e, enquanto ser moral, produz efeitos assumindo a si mesmo, ou sua própria vontade, como causa.

Quando alguém que tem de fazer suas próprias decisões responsabilizando-se por elas subverte sua vida num reflexo de uma ciência indutiva, comete a mais nefasta das confusões. Ele não pode se irresponsabilizar, só se imoralizar. Isso é o que faz alguém que decide que sua ética e sua moral coincidem com um corpus médico, e que o médico é o responsável por suas decisões mais íntimas (i.e “como devo viver minha vida”, não há nada mais íntimo que isto).

Dessa forma, um médico estaria errado em repreender moralmente uma moça cristã que não quer abortar seu filho. Isso não é uma questão médica, e nem deve ser. É uma questão ética, íntima de cada um consigo mesmo. E não porque Deus exista, não é esta a questão. A questão é que nas nossas decisões, nossa ética e nossa moral devem estar acima das ciências. Ou seja, quando ambas conflitam sem certeza absoluta, a moça, um homem, jamais deve subverter este tipo de decisão em função de uma ou outra ciência, tirando de si a responsabilidade por isto. Isto não quer dizer que um matemático e um religioso discutam no mesmo nível quando o primeiro aponta que determinada soma está incorreta, porque a matemática é uma ciência dedutiva, que trata de verdades necessárias. Mas tratando de probabilidades, da sua chance de ser atropelado, da sua chance de morrer de câncer, o moralista está no terreno mais alto. Nenhum dos dois pode afirmar certeza de nada, um tem probabilidades e o outro tem convicções. Mas convicções, que não são certezas científicas objetivas, são, subjetivamente, absolutos - daí o terreno mais alto da moça que não quer abortar, do sujeito que quer fumar crack e dirigir automóveis acima do limite de velocidade.

Mas quando globalizam-se os absurdos (as confusões médico-jornalísticas, uma probabilidade transformada num absoluto moral - uma pesquisa científica transformada num 'isto faz mal') nos meios de comunicação, a tentação de iludir-se irresponsabilizando-se de seus próprios atos e subvertendo sua moral por uma manchete de jornal é muito grande, especialmente quando temos um ‘cientista’ de probabilidades com patrocinado por alguém interessado ‘provando’ alguma coisa. E aí o jornalista transforma essa prova em alguma coisa faz bem, alguma coisa faz mal, etc. E fazer bem e fazer mal não existem na ciência, muito menos nas ciências indutivas. A pesquisa indica meramente que tal e tal elementos podem influenciar-se mutuamente de forma a gerar outros efeitos.

Uma sociedade pode considerar que encarcerar cidadãos dementes, entupir de benzodiazepínicos metade da população, submeter todo mundo a exames de próstata faz mal ao cidadão. E eles não estarão errados, porque não se trata de ciência o 'fazer mal', mas de moral, de ética. Da nossa humanidade íntima. Aumentar as chances de morte, diminuir a probabilidade de passar de um determinado número de anos de idade, tudo isso é frívolo quando comparado a o que devemos fazer com nossas vidas. São meros elementos a serem considerados, não o próprio núcleo da nossa decisão, que deve ser a vontade livre, a sua individualidade.

Esta é a morte da nossa humanidade íntima, é este o apocalipse.

Não é mais hora de enforcar burocratas em tripas de padres, mas médicos nas tripas dos jornalistas que os tornaram estúpidos a ponto de entregar sua própria liberdade à probabilidades distorcidas e mensalmente recalculadas por novas pesquisas conduzidas com outros patrocínios.

Monday, June 15, 2009

A Ordem Apocalíptica

O apocalipse, propriamente, não veio. Passamos tanto tempo professando-o, não sei. Talvez este tenha sido o problema. Os apocalipses primordiais foram escandalosos, repentinos, inevitáveis. Era como se todos os fatores conspirassem para que houvesse alguma revolução drástica. Nós, homens, éramos também fatores. Mas dessa vez, não como antes. Nosso fogo tornou-se uma compressa de água fria.

Foi como se a infinidade de anúncios da revolução tivesse minado a seriedade da possibilidade de qualquer uma; como se, na hora em que tudo tivesse de ter mudado por uma concatenação inevitável de fatores, esse fatores não estivessem lá, porque estavam presos no trânsito. E assim, o inevitável, a sublevação da ordem que havia, ao invés de ocorrer por meio de algo súbito num curto e perturbado espaço de tempo, acabou por ocorrer diante de nossos olhos, diluída, disfarçada, sob a própria carapaça.

Como se a presença deste inevitável tivesse se tornado tão próxima a nós, tão familiar, que tenha passado a fazer parte da própria ordem que havia. E que há: mas que, no entanto, não seria propriamente uma ordem, mas o próprio apocalipse que engendrou em seu seio e que a destituiu de seu status de ordem.