Segunda aproximação ao problema do mal: o poder
*bruto, não corrigido
Não, não sabemos bem o que é o poder... mas a tradição nos ensinou a vê-lo como algo que uns tem e outros não, e que é exercido numa relação entre ativo e passivo, aquele que exerce o poder e aquele que sofre o poder. Como não me aproximo aqui do poder, mas do mal através do poder, temo ter de partir desta tradição para a problematização.
Parto do poder por razões óbvias: o mal é sofrido no passivo, através de “um certo poder de causar o mal”, que não chamarei de praticar o mal porque, de fato, não creio que seja praticado como mal; porque o mal é precisamente um efeito em nós, não algo em si mesmo, não uma prática ela mesma. Aproximando a vista de qualquer exemplo de ‘mal’, percebe-se que ele só pode ser uma relação, pois a mesma carícia ou a mesma agressão é em um momento amor, legítima defesa, e, em outro, assédio, assassínio.
A questão que aparece de forma mais evidente neste ponto é: não seria, então, todo o poder um mal? Não seria o exercer de qualquer poder, essencialmente, a prática do mal? Mas essa questão é seguida por duas oposições mais poderosas do que ela: a sensatez e a negação. De um lado, nosso pragmatismo vital não cessa de negar suposições que significam coisas que, justamente, nos produzirão algum mal; de outro, a sensatez não pode deixar de nos indicar que o poder é exercido necessariamente e que toda essa pergunta cheira mal.
Assim, o que me parece a questão mais importante aqui é “como identificar mal numa relação de poder”, ou seja: o que é poder ilegítimo?
E é muito simples: seguindo nossa distinção inicial, temos uma autoridade e um receptor de autoridade, alguém que exerce o poder e alguém que o recebe. Mas examinando o que significa ser uma autoridade, descobrimos intrinsecamente a noção de alguém que exerce o poder em função dos receptores de autoridade, ou seja, descobrimos que o governante governa para o governado e que é isso que é governar para nós.
Aí fica claro que aquela questão só faria sentido numa situação de anarquia, e que a nossa questão é a apropriada para avaliar os casos que mais me interessam aqui (a paternidade e o governo. E logo ficará claro porque estas duas me interessam tanto).
Definindo um governo como uma instituição política que detém o monopólio da violência num dado território, a questão “quando um governo é legítimo” (quando o poder exercido por um governo é legitimo) deve ser respondida assim: quando seu poder é exercido segundo os interesses do governado. Entretanto, estes interesses fazem parte também da responsabilidade da autoridade... como é ela que exerce o poder, é ela que determina quais são estes interesses. Eles são contestados, mas o monopólio da violência e a ultima palavra são da autoridade – ela sabe melhor do que o governado qual é o interesse dele – e aí está o ponto central da legitimidade deste poder.
A autoridade legitima reside, portanto, na impotência e na ignorância dos governados: somente quando os governados não puderem buscar seus próprios interesses, que mal saibam quais são eles... enquanto não estiverem aptos a trocarem as próprias fraldas, este poder é legitimo.
Mas o poder é uma coisa complicada... ele tende a exercer, junto com seus propósitos, a si mesmo, ele tende a justificar-se a si mesmo. É assim que em algum momento a relação entre pais e filhos se subverte a um equivalente cínico dos apologistas do absolutismo: o filho obedece o pai porque o pai sustenta o filho, porque o filho não tem poder algum e deve obediência ao que tem poder. E porque, precisamente, o filho não tem este poder? Porque aqueles que o tem o deixaram assim, nu – pariram-no pobre e se recusaram a dividir este poder... é um jogo de poder no qual o governado começa sem nenhum poder, assim como na delimitação de um governo na fundação de uma cidade, tem alguém que começa na hierarquia mais baixa e se vê impossibilitado de subir justamente por não ter poder. Porque para se exercer poder, senhoras e senhoras, ele precisa estar lá para ser exercido.
E o que eu vejo nestes dois exemplos é o seguinte:
O poder político é essencialmente ilegítimo, ele não é, de fato, exercido segundo os interesses dos governados – entretanto, quando estes são desrespeitados além do limite, a história nos ensina que há revoluções... que o governado pode aliar-se a algum poder para derrubar o poder anterior, de forma que este poder ilegítimo tende a se exercer de forma legitima (embora jamais chegue a tocar na reta da legitimidade).
Mas situação se inverte completamente no caso da paternidade... pois este é um poder essencialmente legitimo, exercido em função dos interesses do filho... no entanto, a partir de determinado ponto (quando o filho tem o poder de trocar as próprias fraldas, ou seja, quando ele de fato tem este ‘poder’ essencial, que é o poder sobre si mesmo) esses interesses [o interesse que o governado põe para si e o que o governante o impõe como seu melhor interesse] necessariamente entram em conflito e, surpresa, o exercício do poder não se suspende a si mesmo. Quando tratei do problema do mal, é exatamente esta a situação-problema mais importante. É quando o governado tem condições de determinar seus próprios interesses, quando tem o poder de desenvolver interesses contrários aos do governo... porque é deste ponto que os interesses do governo não passam, jamais a autoridade irá impor para si o interesse do governado como algo que não está de acordo com seus interesses... de forma que só não há conflito enquanto o governado não tiver desenvolvido algum interesse contrário aos interesses do governante.
Não, não sabemos bem o que é o poder... mas a tradição nos ensinou a vê-lo como algo que uns tem e outros não, e que é exercido numa relação entre ativo e passivo, aquele que exerce o poder e aquele que sofre o poder. Como não me aproximo aqui do poder, mas do mal através do poder, temo ter de partir desta tradição para a problematização.
Parto do poder por razões óbvias: o mal é sofrido no passivo, através de “um certo poder de causar o mal”, que não chamarei de praticar o mal porque, de fato, não creio que seja praticado como mal; porque o mal é precisamente um efeito em nós, não algo em si mesmo, não uma prática ela mesma. Aproximando a vista de qualquer exemplo de ‘mal’, percebe-se que ele só pode ser uma relação, pois a mesma carícia ou a mesma agressão é em um momento amor, legítima defesa, e, em outro, assédio, assassínio.
A questão que aparece de forma mais evidente neste ponto é: não seria, então, todo o poder um mal? Não seria o exercer de qualquer poder, essencialmente, a prática do mal? Mas essa questão é seguida por duas oposições mais poderosas do que ela: a sensatez e a negação. De um lado, nosso pragmatismo vital não cessa de negar suposições que significam coisas que, justamente, nos produzirão algum mal; de outro, a sensatez não pode deixar de nos indicar que o poder é exercido necessariamente e que toda essa pergunta cheira mal.
Assim, o que me parece a questão mais importante aqui é “como identificar mal numa relação de poder”, ou seja: o que é poder ilegítimo?
E é muito simples: seguindo nossa distinção inicial, temos uma autoridade e um receptor de autoridade, alguém que exerce o poder e alguém que o recebe. Mas examinando o que significa ser uma autoridade, descobrimos intrinsecamente a noção de alguém que exerce o poder em função dos receptores de autoridade, ou seja, descobrimos que o governante governa para o governado e que é isso que é governar para nós.
Aí fica claro que aquela questão só faria sentido numa situação de anarquia, e que a nossa questão é a apropriada para avaliar os casos que mais me interessam aqui (a paternidade e o governo. E logo ficará claro porque estas duas me interessam tanto).
Definindo um governo como uma instituição política que detém o monopólio da violência num dado território, a questão “quando um governo é legítimo” (quando o poder exercido por um governo é legitimo) deve ser respondida assim: quando seu poder é exercido segundo os interesses do governado. Entretanto, estes interesses fazem parte também da responsabilidade da autoridade... como é ela que exerce o poder, é ela que determina quais são estes interesses. Eles são contestados, mas o monopólio da violência e a ultima palavra são da autoridade – ela sabe melhor do que o governado qual é o interesse dele – e aí está o ponto central da legitimidade deste poder.
A autoridade legitima reside, portanto, na impotência e na ignorância dos governados: somente quando os governados não puderem buscar seus próprios interesses, que mal saibam quais são eles... enquanto não estiverem aptos a trocarem as próprias fraldas, este poder é legitimo.
Mas o poder é uma coisa complicada... ele tende a exercer, junto com seus propósitos, a si mesmo, ele tende a justificar-se a si mesmo. É assim que em algum momento a relação entre pais e filhos se subverte a um equivalente cínico dos apologistas do absolutismo: o filho obedece o pai porque o pai sustenta o filho, porque o filho não tem poder algum e deve obediência ao que tem poder. E porque, precisamente, o filho não tem este poder? Porque aqueles que o tem o deixaram assim, nu – pariram-no pobre e se recusaram a dividir este poder... é um jogo de poder no qual o governado começa sem nenhum poder, assim como na delimitação de um governo na fundação de uma cidade, tem alguém que começa na hierarquia mais baixa e se vê impossibilitado de subir justamente por não ter poder. Porque para se exercer poder, senhoras e senhoras, ele precisa estar lá para ser exercido.
E o que eu vejo nestes dois exemplos é o seguinte:
O poder político é essencialmente ilegítimo, ele não é, de fato, exercido segundo os interesses dos governados – entretanto, quando estes são desrespeitados além do limite, a história nos ensina que há revoluções... que o governado pode aliar-se a algum poder para derrubar o poder anterior, de forma que este poder ilegítimo tende a se exercer de forma legitima (embora jamais chegue a tocar na reta da legitimidade).
Mas situação se inverte completamente no caso da paternidade... pois este é um poder essencialmente legitimo, exercido em função dos interesses do filho... no entanto, a partir de determinado ponto (quando o filho tem o poder de trocar as próprias fraldas, ou seja, quando ele de fato tem este ‘poder’ essencial, que é o poder sobre si mesmo) esses interesses [o interesse que o governado põe para si e o que o governante o impõe como seu melhor interesse] necessariamente entram em conflito e, surpresa, o exercício do poder não se suspende a si mesmo. Quando tratei do problema do mal, é exatamente esta a situação-problema mais importante. É quando o governado tem condições de determinar seus próprios interesses, quando tem o poder de desenvolver interesses contrários aos do governo... porque é deste ponto que os interesses do governo não passam, jamais a autoridade irá impor para si o interesse do governado como algo que não está de acordo com seus interesses... de forma que só não há conflito enquanto o governado não tiver desenvolvido algum interesse contrário aos interesses do governante.