Dysfemismo

Tuesday, September 16, 2008

Primeira aproximação séria ao problema do mal

Perdoem-me o tamanho do texto, compactuo com vosso horror. No entanto, a grave seriedade do assunto, sua suma importância, acabaram me obrigando a tal extensão.
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Nos velhos paradigmas, como já devo ter comentado por aqui em algum lugar, não há estatuto ontológico do mal; ou seja, o mal não tem ser [onta], não é, propriamente, mas é apenas a ausência do que é – o Bem. Não há Mal, só males, ausências particulares do Bem.

Milênios depois dessa historia começar, a maior parte dos sensatos (que, como sensatos, são absolutamente alheios à sutilezas ontológicas) vê nisso uma completa babaquice: o “Bem é ausência de mal” é equivalente ao Mal ser ausência de bem – e, para responder a esta objeção, eu seria forçado a uma história da epistemologia ocidental. E não é isto que quero aqui; farei, portanto, uma aproximação diversa, talvez mais compreensível e útil [este grande fantasma de nossos tempos - “mas pra que serve isso?”, pergunta inteligente, auto-evidente, mas principalmente necessária no Discurso Autorizado].

Aqui, atento para o que há de comum entre o ato bom e o ato mal: a ação moral. A ação moral não é tomar a decisão certa – muitos tentaram subverter as coisas de tal forma estabelecendo, fixando “a ação certa”, ou uma certa ação certa, vinculando-a, desta forma, ao Bem. Mas a decisão moral só tem lugar no campo da incerteza: não há lugar para a moral na ciência, no conhecimento.

A questão aparece, assim, desta forma: a ação [moral] é um ato de responsabilidade individual, um ato do sujeito, um ato originário da vontade [e que pensemos a vontade, aqui, apenas como isto: a projeção de uma unidade originária de nossa ação, ainda que nada nos autorize a tal suposição – porque a moral não é “autorizada” pela ciência, ela é necessária na vida social]. Como tal, um ato que não implica em certos e errados mas com certa relação subjetiva entre o sujeito e algo que não pode ser conhecido mas não pode deixar de ser pensado, a saber, o Bem.

Desta perspectiva, todo ato moral, todo ato do sujeito que se responsabiliza por determinada ação em detrimento de outras, é um ato Bom na medida em que se relaciona com algum bem particular. Bem particular, este, que é certa ausência de Bem (justamente aonde ele é particular e não universal, porque este Bem universal não pode ser produzido),

O que me preocupa aqui é a banalização da moral: retira-se de cada ação, de cada ato, a responsabilidade do sujeito – ele apenas reproduz certa medida estabelecida, certo bem particular, ao infinito. O sujeito torna-se um mero reprodutor de um discurso, mas não só dele como discurso mas dele como implicando certa ação. É a “coisa certa a se fazer”, não há espaço para responsabilidade alguma aí. Falam em tomar responsabilidade pelos seus atos geralmente quando se trata de uma ação que toma a direção contrária deste “certo” – mas e a ação que segue este certo, quem é responsável por ela?

É este ninguém, este alguém absolutamente impessoal que chamo de sujeito coletivo. É uma voz, um Discurso Autorizado que se repete através das pessoas mas não pertence a ninguém propriamente, e a ação que tem nele a origem não pode responsabilizar a ninguém e, portanto, não pode nem ser chamado propriamente de um ato moral.

No entanto, atravessando a todos desta forma, este discurso acaba sendo produtor de atos que necessariamente serão avaliados da perspectiva moral: e estes serão, inevitavelmente, atos imorais no mais alto grau; atos nos quais o sujeito não toma responsabilidade pela ação mas que, no entanto, são essencialmente atos sociais [que produzem mal e bem] e, portanto, atos do campo da moral. Por esta razão, esta irresponsabilidade é o maior mal possível – é a maior distancia de um ato Bom que pode ser produzida, pois é a reprodução de um bem particular que não pertence a ninguém, apenas a um discurso, um poder que te atravessa.

O melhor exemplo disto é a execução de atos particulares por intermediários do totalitarismo, das ditaduras. O torturador, o carrasco de qualquer tipo de fascismo [qualquer governo que, por uma razão ou outra, deixa de reconhecer uma parte delimitada de sua população como alheia a si] jamais tortura em seu próprio nome, na sua própria responsabilidade: ele está apenas seguindo ordens, reproduzindo, na ação, um discurso que o atravessava. Ele estava fazendo o certo [pois o certo só o é com relação a algum parâmetro, e este discurso-poder que nos atravessa atua desta forma], mas não o bom.

Mas o que se reconhece facilmente aí se torna, quanto mais aproximamos o pensamento de nós, obscuro. A questão é em que medida as minhas ações não são apenas a reprodução deste discurso. Em que medida eu não estou buscando o certo e utilizando como parâmetro algo alheio a mim, alheio a todos: este discurso autorizado, estas frases que todos repetem, este senso comum, isto que todos sabem, o óbvio.

Ou ainda, mais apropriadamente: o neutro - que não é imputável a ninguém,
mas diz respeito a todos. É uma especie de estupro pseudocientifico no campo da moral.

Pois este é um mecanismo intrínseco, é algo automático e natural para nós – é desta naturalidade que se aproveita o discurso publicitário, por exemplo, repetindo algo que já era repetido mas re-inserindo neste discurso autorizado algo que pode ser repetido como ‘original’ por cada sujeito, que terá a impressão de ter ‘escolhido’ algo simplesmente pela proximidade deste algo ao discurso autorizado que ele próprio repete, que é repetido pelo discurso publicitário.

Ou no caso dos pais quando educam seus filhos, reproduzindo um certo discurso em sua ação e remetendo sua responsabilidade a um certo sujeito coletivo, a um certo certo que não lhe pertence; a algo que lhe é imposto, como se não pudesse agir de outra forma; porque todos os pais fazem assim e falam assim, mas nao é por esta ou aquela razão que o fazem, fazem simplesmente porque é assim que se faz. Qual é, afinal de contas, o pai que sobreviveria se tivesse que responsabilizar-se por cada uma de suas ações com relação a seus filhos? Como se justificaria este pai, sozinho no mundo, que não reproduz discurso algum e educa seu filho como bem entende? Como fará com que seus filhos façam o que ele quer, se, ao primeiro passo que este der pra fora de casa, alguém lhe dirá outra coisa?

Ao contrário, quando tudo e todos são meros reprodutores do discurso autorizado, o filho não tem para onde fugir e o pai pode dormir tranquilo, pois como dormiria fazendo o contrário do discurso que o atravessa incessantemente?

10 Comments:

  • ainda nada corrigido

    By Blogger Dr. Voldo, At 9:07 AM  

  • ... deu para perceber.
    Mas o texto está ótimo. Já falamos muito sobre isso e eu tinha alguma dificuldade para compreender o mal como ausência do bem. Job done. Entendi.
    Mas tenho que discordar do "maior mal possível". Uma ausência não tem tamanho.

    By Blogger Flavio Ferrari, At 5:46 PM  

  • maior em termos de grau

    então que fique reformulado pra 'mal no mais alto grau'

    By Anonymous Anonymous, At 6:04 PM  

  • Rodrigo Ferrari said...
    ainda nada corrigido

    Blogger Flavio Ferrari said...
    ... deu para perceber.

    By Anonymous Anonymous, At 2:05 AM  

  • Parabéns. Você acaba de explicar, timtim por timtim, o comportamento do Excelentíssimo Senhor Presidente da República.

    By Blogger Ernesto Dias Jr., At 4:19 PM  

  • Ou seria tintim por tintim?

    By Blogger Ernesto Dias Jr., At 4:19 PM  

  • Como você me parece adulto! Tenho saudade. Beijos.

    By Blogger zuleica-poesia, At 6:22 AM  

  • Fato é que nós, mães e pais, no limite e na pressão, nos deparamos com nossos mais egoístas e mesquinhos sentimentos em relação às crias (e talvez essa seja a deixa prá que as crias deêm mesmo no pé, em busca de seu próprio lugar).

    No entanto afirmo - feliz, sincera e humildemente - que sou uma mãe que dorme tranquila.

    By Blogger Udi, At 7:26 AM  

  • Corrigir o quê?!

    By Blogger Udi, At 7:27 AM  

  • o objetivo 'benéfico' da mãe, bem como o do presidente, não deveria ser o de dormir tranquilo.. isso é fácil, é só não pensar.. assim como é impossível pra quem nao consegue deixar de pensar.

    e toda essa questão só existe porque pais, mães, presidentes, etc. (bem como filhos e eleitores) não só se deparam como são esses mais mesquinhos e egoístas sentimentos

    Mas o governante e o pai clamam pra si uma certa responsabilidade, assumem essa responsabilidade... é isso que significa ser uma autoridade, desde os tempos de Platão - salvo talvez pelos tempos do absolutismo que só 'pensava' justificativas para o próprio poder - o ocidente não pode pensar seriamente numa autoridade senão como o poder em função daquele sobre os quais o próprio poder se exerce....
    o governante nao governa pra si, a mãe não é mãe para si, e a autoridade é plenamente responsável pelo comandado, ou, mais precisamente, pelos interesses do governado, e é justamente assim, e só assim que se justifica o exercer deste poder.. como um poder exercido segundo o interesse pleno do governado, e qualquer poder exercido na contramão desta diretriz é chamado ESTUPRO.

    e é por tal razão, ou seja, porque humanos insistem em exercer sua autoridade, seu poder, que o problema do mal se torna tão sério.
    Porque alguns, talvez muitos e possivelmente todos os humanos continuam vendo em determinados sujeitos o direito de governar em função de outros que tem o dever de obedecer pelo seu próprio bem.
    Porque isto só é legitimo quando é benéfico, e não quando as intenções são boas.

    Não dá pra dizer que um presidente retardado e absolutamente bem intencionado que destrói a nação é um bom presidente, ainda que ele durma tranquilo. O mesmo vale para qualquer autoridade.

    By Blogger Dr. Voldo, At 8:10 AM  

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