Dysfemismo

Monday, September 29, 2008

Segunda aproximação ao problema do mal: o poder

*bruto, não corrigido

Não, não sabemos bem o que é o poder... mas a tradição nos ensinou a vê-lo como algo que uns tem e outros não, e que é exercido numa relação entre ativo e passivo, aquele que exerce o poder e aquele que sofre o poder. Como não me aproximo aqui do poder, mas do mal através do poder, temo ter de partir desta tradição para a problematização.

Parto do poder por razões óbvias: o mal é sofrido no passivo, através de “um certo poder de causar o mal”, que não chamarei de praticar o mal porque, de fato, não creio que seja praticado como mal; porque o mal é precisamente um efeito em nós, não algo em si mesmo, não uma prática ela mesma. Aproximando a vista de qualquer exemplo de ‘mal’, percebe-se que ele só pode ser uma relação, pois a mesma carícia ou a mesma agressão é em um momento amor, legítima defesa, e, em outro, assédio, assassínio.

A questão que aparece de forma mais evidente neste ponto é: não seria, então, todo o poder um mal? Não seria o exercer de qualquer poder, essencialmente, a prática do mal? Mas essa questão é seguida por duas oposições mais poderosas do que ela: a sensatez e a negação. De um lado, nosso pragmatismo vital não cessa de negar suposições que significam coisas que, justamente, nos produzirão algum mal; de outro, a sensatez não pode deixar de nos indicar que o poder é exercido necessariamente e que toda essa pergunta cheira mal.

Assim, o que me parece a questão mais importante aqui é “como identificar mal numa relação de poder”, ou seja: o que é poder ilegítimo?

E é muito simples: seguindo nossa distinção inicial, temos uma autoridade e um receptor de autoridade, alguém que exerce o poder e alguém que o recebe. Mas examinando o que significa ser uma autoridade, descobrimos intrinsecamente a noção de alguém que exerce o poder em função dos receptores de autoridade, ou seja, descobrimos que o governante governa para o governado e que é isso que é governar para nós.

Aí fica claro que aquela questão só faria sentido numa situação de anarquia, e que a nossa questão é a apropriada para avaliar os casos que mais me interessam aqui (a paternidade e o governo. E logo ficará claro porque estas duas me interessam tanto).

Definindo um governo como uma instituição política que detém o monopólio da violência num dado território, a questão “quando um governo é legítimo” (quando o poder exercido por um governo é legitimo) deve ser respondida assim: quando seu poder é exercido segundo os interesses do governado. Entretanto, estes interesses fazem parte também da responsabilidade da autoridade... como é ela que exerce o poder, é ela que determina quais são estes interesses. Eles são contestados, mas o monopólio da violência e a ultima palavra são da autoridade – ela sabe melhor do que o governado qual é o interesse dele – e aí está o ponto central da legitimidade deste poder.

A autoridade legitima reside, portanto, na impotência e na ignorância dos governados: somente quando os governados não puderem buscar seus próprios interesses, que mal saibam quais são eles... enquanto não estiverem aptos a trocarem as próprias fraldas, este poder é legitimo.

Mas o poder é uma coisa complicada... ele tende a exercer, junto com seus propósitos, a si mesmo, ele tende a justificar-se a si mesmo. É assim que em algum momento a relação entre pais e filhos se subverte a um equivalente cínico dos apologistas do absolutismo: o filho obedece o pai porque o pai sustenta o filho, porque o filho não tem poder algum e deve obediência ao que tem poder. E porque, precisamente, o filho não tem este poder? Porque aqueles que o tem o deixaram assim, nu – pariram-no pobre e se recusaram a dividir este poder... é um jogo de poder no qual o governado começa sem nenhum poder, assim como na delimitação de um governo na fundação de uma cidade, tem alguém que começa na hierarquia mais baixa e se vê impossibilitado de subir justamente por não ter poder. Porque para se exercer poder, senhoras e senhoras, ele precisa estar lá para ser exercido.
E o que eu vejo nestes dois exemplos é o seguinte:

O poder político é essencialmente ilegítimo, ele não é, de fato, exercido segundo os interesses dos governados – entretanto, quando estes são desrespeitados além do limite, a história nos ensina que há revoluções... que o governado pode aliar-se a algum poder para derrubar o poder anterior, de forma que este poder ilegítimo tende a se exercer de forma legitima (embora jamais chegue a tocar na reta da legitimidade).

Mas situação se inverte completamente no caso da paternidade... pois este é um poder essencialmente legitimo, exercido em função dos interesses do filho... no entanto, a partir de determinado ponto (quando o filho tem o poder de trocar as próprias fraldas, ou seja, quando ele de fato tem este ‘poder’ essencial, que é o poder sobre si mesmo) esses interesses [o interesse que o governado põe para si e o que o governante o impõe como seu melhor interesse] necessariamente entram em conflito e, surpresa, o exercício do poder não se suspende a si mesmo. Quando tratei do problema do mal, é exatamente esta a situação-problema mais importante. É quando o governado tem condições de determinar seus próprios interesses, quando tem o poder de desenvolver interesses contrários aos do governo... porque é deste ponto que os interesses do governo não passam, jamais a autoridade irá impor para si o interesse do governado como algo que não está de acordo com seus interesses... de forma que só não há conflito enquanto o governado não tiver desenvolvido algum interesse contrário aos interesses do governante.

4 Comments:

  • êba! temos aqui assunto para um longo período!

    confesso que tenho uma baita dificuldade de transitar pelos campos da discussão acerca do "poder" ou "não-poder"... "poder" é realmente um verbo que só faz sentido quando considerada a natureza humana.

    no entanto, "maternidade" é um terreno no qual sinto-me bastante confortável (poderosa?) em passear.

    apenas para delinear alguns contornos (mãe adora limite!) para esta conversa: há uma diferença básica entre as 2 relações ativo/passivo tratadas por você(considerando que vc classifica ambas dessa mesma forma - governante/governado e pai-mãe/filho): na relação pai-mãe/ filho há afeto, afetividade... já na relação governante/ governado há (pode haver) paternalismo (e o nosso presidente da república é o protótipo do que estou afirmando).
    Pergunto: essa (deturpada/projetada) relação governante/governado teria origem na deficitária construção da relação pai-mãe/filho?

    By Blogger Udi, At 5:18 PM  

  • acho que a sua pergunta já está até respondida ai dentro... conceitos como paternalismo (fazer com o povo ignorante a mesma coisa que se faz com a criancinha ingenua, distribui doces pra conseguir o que voce quer do governado) partem dessa relacao inevitavel e obvia entre o governo e a família,porque, surpresa, a família é a unidade política básica da nossa espécie...
    isso desde os gregos com os pater familias e a organizacao interna dos demos que tem como unidade fundamental a familia.. passando pelo grande pai governante do mundo, deus... ao mandamento que segue o do respeito à deus, que é o governante supremo, ou seja, o do respeito aos pais, os governantes da terra...depois com os positivistas, até frued e a lei do pai como lei da cultura...

    enfim, embora eu nao veja deturpação e déficit algum (salvo com relação ao que voce provavelmente acha que deveria ser um governo e o que deveria ser uma familia..) nessas relações, só discursos-poder incompativeis com a propria natureza dessas relações..

    e quanto ao afeto: nao sei como voce define afeto.. mas a unica forma não problematica que eu encontro de defini-lo (removendo todos os aspectos inverificaveis como intenção, etc.) é como 'produção de sensaões boas como fim em si mesmo', ou seja, mais precisamente a carícia do que o afeto. porque o afeto mesmo é inverificavel, ele depende de uma certa afetuosidade interior ao agente, de expressões e aparencias que podem não acompanhar o afeto e serem pura encenação...

    definida assim, eu nao diria que é uma 'diferença básica', mesmo porque as 'diferenças básicas' entre essas coisas são, em geral, nominhos bonitos que, quando tentamos defini-los, nos escapam...
    chamavam isso na grécia de aphanes metron, as medidas não aparentes.. hoje chamamos de conceitos, mas depois de nomea-los como conceitos eles parecem tão mais sob nosso controle e conhecimento do que realmente estão..

    afinal, como voce pode medir o afeto, identificar o afeto, salvo pela sensação? e distinguir duas relações de poder pela produção de uma sensação me parece muito insensato já que as sensaçoes sao produzidas de diversas formas e com diversos fins...

    de forma que o afeto se afigura (a mim, pelo menos, que busco usar como pilar das minhas discussoes ou um termo com uma definição que eu mesmo cunhei ou a propria problematizacao do termo) mais como um fantasma do que como um bom critério de distinção

    eu prefiro como critério de distinção o grau de burocracia necessária... enquanto voce ainda fala com o governante é uma família, quando ele é uma figura longinqua só acessível À mãe (o resto da nobreza), estamos adentrando no campo do governo.. embora a distnção nao seja 'óbvia', ela é só uma arbitrariedade muito razoavel...

    temos familias, as familias se organizam em, digamos, fratrias, essas fratrias em alguma coisa maior até que um representante de cada uma dessas divisoes governa o 'todo' dessas familias, que chamamos cidade.

    mas as regras de funcionamento, salvo as diferenças implicadas pela alteração do grau (a quantidade de gente, as especificidades da relacao entre cada 'irmão', etc.) permanecem as mesmas no que diz respeito ao poder...o que muda é o discurso em cima desse poder, que envolve 'afeto' e 'o melhor pra voce' ao inves de 'o certo' e 'o melhor pro país', ou sabe-se lá mais o que

    temos de um lado o poder e seus resopnsáveis, a autoridade, que possui o monopólio da violencia e da força (no caso da familia o pai é maior que os filhos... no caso da cidade os governantes tem mais armas, ou, talvez mais recentemente, meios de comunicação em massa), e, de outro, os ausentes de poder, os ingenuos, os ignorantes.. que nao sabem porque obedecem, não sabem porque e com a autorização de quem foram transformados em suditos mas que, geralmente, carregam consigo um discurso que, surpresa, aprova ou tolera o exercício do poder sobre si.

    é isso talvez que permite reich dizer 'não, as massas nao foram enganadas, em algum momento elas desejaram o fascismo..." o que vai tao contra o marxismo vulgar impregnado em nós que até dá arrepios

    By Blogger Dr. Voldo, At 9:51 AM  

  • “o afeto mesmo é inverificavel, ele depende de uma certa afetuosidade interior ao agente, de expressões e aparencias que podem não acompanhar o afeto e serem pura encenação...”

    leio estas palavras e, espontaneamente, meus lábios se alongam para cada um dos lados, num sorriso afetuoso... talvez possa até ter, nesse sorriso, uma certa arrogância paternalista do "mais velho" que "conhece" o mais novo... a mãe que conhece os desejos do bebê que não sabe falar... e "intui" o que melhor lhe convier para a demanda do momento.

    mas, apesar de te conhecer (pela convivência) muito pouco, o que me faz sorrir é o fato de reconhecer nesta frase um aspecto de sua personalidade que é o de expressar o afeto através de formas não-convencionais.

    ... e ainda tenho mais a dizer.

    By Blogger Udi, At 5:09 PM  

  • sim, pode-se dizer que eu expresso meu afeto de forma inconvencional (talvez porque as formas convencionais me parecam tão suspeitas)...

    mas a questão permanece: se todos os 'sintomas' (ou seja, tudo o que pode ser verificado pela experiencia) do afeto podem ser encontrados sem a existencia do que o próprio afeto considera como seus limites (por exemplo, um ator em uma peça dá exatamente todos os mesmos sintomas), é muito arriscado utiliza-lo como parametro de qualquer coisa...
    porque o afeto não é os sintomas do afeto (não é propriamente fazer carinho, ou dar beijo, dar presente.. nao é nada disso, esses são só os sintomas verificáveis do afeto)... nós até falamos em afeto que não tem esses sintomas, para nós não é contradição alguma pensar em um pai estressado e grosso que demonstra o afeto, digamos, através da violencia física..

    Mas sempre encontraremos, quando falamos de afeto, uma coisa inverificável.. é um dos 'conceitos' que não é bem um conceito, é o nome de uma 'totalidade' pensada pela razão, mas que não é dada pela experiencia e jamais o será..

    porque o afeto, para nós, é um 'sentimento terno de afinidade' (Houaiss, 1,2) que geralmente, mas nao necessariamente, vem acompanhado de certos sintomas
    e aí está, este sentimento é óbviamente inverificável porque nem trata da experiencia... não se trata do que voce vê ou do que 'aparece', mas do que voce especula sobre isso.
    Mas tudo isto é muito obscuro, porque, apesar de ser uma especulação, é uma especulação 'prática' gravada na linguagem e de acordo com o nosso conhecimento objetivo das coisas.
    não é meramente uma ilusão, no entanto, não é um conceito do entendimento ao qual podemos nos remeter objetivamente...

    By Anonymous Anonymous, At 8:02 AM  

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