Dysfemismo

Sunday, June 01, 2008

A Boa Física é Feita a Priori*

Nossa história começa pelos fins do século XII, quando escritos aristotélicos advindos do Oriente atingem o Ocidente e são traduzidos do arábico de Averróis, Alfarabi e Avicena. Pouca coisa de Platão, como por exemplo o Timeu de Chalcidius do século IV, já era conhecida, mas seu autor permanece bem mais desconhecido no ocidente medieval.

A leitura oficial de Aristóteles é proibida em 1210, mas suas obras disseminavam-se paralelamente ao desenvolvimento das Universidades, até que São Tomás, inserindo ainda que impropriamente o conceito substâncias imateriais na sua interpretação, cristianiza-o e inicia uma tradição que irá vincular o De Caelo aristotélico ao sistema Ptolomaico e formará filósofos comentadores responsáveis por salvar os fenômenos na volatilidade retórica das regras que não se harmonizavam plenamente com os novos fenômenos observados.

Dentro deste complexo sistemático, o Universo seria composto pela Terra no centro e abóbadas celestes perfeitamente esféricas à sua volta, movimentando-se com os astros nelas ‘incrustados’. Era um universo provido de uma hierarquia ontológica bem definida, que afirmava serem as coisas da terra formadas pelos quatro elementos (terra, ar, fogo, água) e, as dos céus, por um elemento imutável chamado de quinta-essência. As leis de um, portanto, não valeriam para o outro. O Espaço não era uniforme.

Cada coisa naturalmente encontra-se em um lugar determinado, a menos que algum motor remova-as violentamente de seu lugar natural, para o qual ela devera naturalmente voltar quando o motor se ausentar. O movimento, portanto, tem peso de prova sobre o repouso; é somente um processo.

Diz-se ciência, mas não o é no sentido platônico de episteme ou no sentido de ciência que temos como filhos da modernidade. É uma ciência lógica, retórica e qualitativa, perfeitamente coerente e, na medida do possível (considerando o duplo papel atribuído ao ar, de motor e resistência, por exemplo), razoavelmente de acordo com o senso comum.

É um complexo retórico-teológico na medida em que não pode ser considerado verdadeiro algo que está em desacordo com a Bíblia, ou, mais precisamente, com determinados dogmas interpretativos da Escritura.

O apocalipse deste complexo foi lento e, para alguns dos envolvidos, doloroso. Dois dos principais precursores dessa queda, no que diz respeito a seus pontos fundamentais (as leis do movimento pela a nivelação ontológica dos espaços e a infinidade do universo como conseqüência) foram Nicolau de Cusa e Bruno, que tentam estabelecer a unidade física do cosmos; o primeiro claramente medieval, devedor de um matematismo neoplatonico como o da escola de Oxford – reacionário, porém não mais preso à velha lógica aristotélica linear; o segundo, como todo visionário, especulativo – mas é o mais audacioso de todos, talvez o primeiro a intuir o conceito de sistema inercial, através da noção da relatividade dos movimentos (bem mais claros em Galileu, mas só precisamente extrapolado por Newton), enquanto defendia o sistema heliocêntrico de Copérnico.

É neste ponto, na germinação dos princípios de uma mentalidade instrumental nascida do espírito de precisão de Tycho Brahe, que se torna possível a observação de algo como um contra-sistema, não propriamente um embrião de ciência moderna, mas um ‘negativo coerente’ de críticas, unido em torno da infinidade do universo e da equivalência ontológica entre o céu e a terra.

A volta ao bom senso foi empreendida pelos nominalistas como Occam que postulam a teoria do impetus, que, embora não alterando a ontologia do movimento, removem a necessidade de um motor que acompanhe o movimento em toda a sua aceleração, pois algo pode ser imprimido no objeto movido, algo que exerce o papel de motor; este algo foi chamado por vários nomes, entre os quais virtus motiva e vis impressa. Galileu, no De Motu, um tratado de sua juventude, mostra-se favorável a esta teoria. Ela, e sua árvore de pensadores, no entanto, não foi a ‘vencedora’ na corrida pela verdade.

No fim, porém, sua fidelidade ao modelo cientifico de Arquimedes, consegue defender este contra-sistema muito melhor do que seus predecessores com um corte claro na história da ciência, introduzindo definitivamente a primazia da matemática e da razão por sobre a experiência sensível.

Seu telescópio é considerado por Koyré como o primeiro instrumento verdadeiramente científico, pois foi construído segundo uma teoria e utilizado para uma teoria. O instrumento já existia, de forma mais elementar, mas foi Galileu quem, munido de uma teoria observou os céus. Depois dele torna-se oficial: os sentidos não são fonte de ciência; eles precisam ser conduzidos pela razão: é ela que pergunta ao experimento, e não o experimento que lhe diz o que quer; este nem lhe dá a resposta, que o cientista poderá inclusive ter de antemão, ou interpretará segundo sua formulação. Sua síntese entre razão e experiência não é exatamente um somado ao outro, mas um comandando ao outro.

Galileu formula claramente a relatividade do movimento, imatura e implícita em Bruno; entretanto, falhou em atribuir o movimento circular aos astros e, por esta razão, não conseguiu formular claramente o principio da inércia (ainda que tenha exposto claramente o funcionamento de sistemas inerciais para provar que, dentro de um – como a Terra – não se pode observar nenhuma diferença entre movimento uniforme e repouso).

Não sentimos a rotação da terra pelo mesmo motivo que não sentiríamos o movimento de um barco perfeitamente estável deslizando em movimento uniforme num mar perfeitamente calmo. Mas isto não é senso comum; talvez nem bom senso. É por isto que com Galileu o perfil matemático torna-se o perfil científico: porque o cientista, como Copérnico, Kepler e ele mesmo, violenta seus próprios sentidos e torna sua razão senhora de seu intelecto. Porque o experimento é conduzido para provar a teoria.

Porque a boa física é feita a priori.


*A priori deriva da expressão em latim 'a priori ratione quam experientia', ou seja, por um raciocínio anterior à experiência [anterior em termos de 'ordem das razões', que a maior parte de vocês desconhece e desrespeita promiscuamente, btw]

5 Comments:

  • A idéia valeu o título e a condução de uma das apresentações que fiz aqui no Peru. Tks.
    O texto está ótimo. Facil de ler e muito interessante.
    Não poderia deixar de colocar uma "farpinha" no final ...
    O que é btw ?

    By Blogger Flavio Ferrari, At 10:30 PM  

  • respondendo ao FF (o Rodrigo não tem muito o hábito de responder aos comentários): acho que btw é uma sigla para aquela palavra que eu adoro grafar como baideuêi!
    :)

    By Blogger Udi, At 7:01 AM  

  • by the way

    e os do meu pai eu sempre respondo

    =D

    By Anonymous Anonymous, At 7:29 AM  

  • - preguiça de corrigir...
    escrevi tudo de uma vez sem tomar cuidado, por isto algumas frases e termos precisam ser corrigidos e alterados...

    By Anonymous Anonymous, At 7:36 AM  

  • Muito interessante o texto. Gostei de vê-lo voltando ao blog. Saudades!...

    By Blogger zuleica-poesia, At 7:14 AM  

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